Acho que eu já o conheço há muito tempo. Desde quando o meu mundo eram as cercanias da antiga casa, a última rua do bairro, os campos infinitos que eram permeados por florestas, cascatas, pinheiros, casas assombradas e incríveis animais. Talvez você já estivesse por perto nas aventuras que a minha infância proporcionou-me, estava por entre as folhas das árvores, nos pés de goiaba. Durante os verões e invernos, as águas sempre geladas dos córregos misteriosos da minha meninice, também lhe deram uma sensação de perigo, um questionamento de que tipo de vida havia naquelas profundezas enlameadas. Você deve ter estado comigo quando inventei mil maneiras de realizar travessuras, de criar histórias, de enfrentar meus medos e também de encarar a varinha de marmelo da mamãe... Imagino que você deve ter dado umas boas gargalhadas, porque eu, ao final das surras, também sentia o comichão de dar risada. É fácil de perceber que você estava por perto: quantas vezes o pensamento vinha de sei-lá-onde para que se aprontassem macaquices, se adentrasse em mundos desconhecidos de baleias, de criações de rãs, de cheiro de essências criadas com flores amarelas e esmagadas. Por certo você ofereceu o seu abraço pequenino quando em noites intermináveis as lágrimas molhavam o travesseiro, caíam grossas e salgadas, por conta das confusões do mundo adulto que estava ao redor. Você deve ter empurrado minha primeira bicicleta e deve ter dado embalo nas divertidas incursões aos balanços das pracinhas. Eu me lembro de um dia ter-lhe visto, à noite, me espiando por detrás da casa antiga e aquilo me deu tanto medo! Os adultos, que não entendem nada de fantasia, me disseram para não dar bola, que eu tinha era que deixar de lado essas besteiras. Mas eu sei que eu lhe vi lá...
Trago na memória o som dos seus passos a acompanhar-me quando adolescente eu andava por estradas de chão batido, procurando por mim. Você deve ter tido curiosidade quando descobri novas realidades, novas substâncias, acordes e as sensações que aos poucos a vida vai apresentando, e pensando bem, você representa o que há de bom para ser vivido; deve ter encorajado-me a descobrir e ter estado ao meu lado naquelas épocas, quando muitas vezes contestei, briguei e com ímpeto juvenil empreendi jornadas deslumbrantes, longas caminhadas em busca de cumes de montanhas.
Quando ébrio tentava ver as linhas retas que a sociedade teimava em fazer-me andar, você deve ter traçado arco-íris de giz-de-cera ao redor...
Encontro-lhe de carne e osso numa tarde de sol e chuva. Você vem serelepe das entranhas daquela que você me ensinou a amar. Daquela que também ouviu o seu chamado, o som de sua flauta. Da mulher que cantou o seu canto, que dançou de maneira bela a sua música, daquela que guarda em si a marca da sua espécie. Você veio como um fruto de árvore antiga, precioso e belo e sabedor do seu rumo. Veio por vontade própria, como um deus que sabe o que quer, como um deus que traça os destinos e escolhe o que é melhor para si. Veio como as uvas que nascem do improvável, precisam do frio, precisam de sol, estão emaranhadas em parreiras eternas e por todo o mundo oferece seu sabor, seu hálito que é festa e dança, sagrado e profano.
Reencontro-lhe sorridente e percebo em seu riso ecos de mim. Nos seus cascos de bode e sua flauta mágica, eu percorro o mundo todo, misturando as lágrimas ao doce acorde da alegria. Você é um pequeno fauno que segura firme na minha mão.
Te amo Dioniso.
Papai Rodrigo.
